segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Slave Ship by Castro Alves feat William Turner

 

O navio negreiro de Castro Alves

          Candido (2000) nomeia Castro Alves como poeta humanitário por expor em suas palavras o sentimento de justiça duma liberdade utópica comum a muitos intelectuais do século XVIII, diante dum mundo em que invoca no ser humano a sedição do

homem contra a sociedade, do oprimido contra o opressor – outra maneira de sentir o conflito, caro aos românticos, entre bem e mal. A dialética da sua poesia implica menos a visão do escravo (ou do oprimido em geral) como realidade presente, do que como episódio de um drama mais amplo e abstrato: o do próprio destino humano, em presa aos desajustamentos da história (CANDIDO, 2000, p. 241).

 

          Consoante Candido (2000) o eu lírico castroalvinista, num sabor assaz psicologicamente consciente, é fruto do despudor com a realidade causadora dum mal-estar, tendo Castro Alves acolhido empatia pelos escravos pretos de África, tendo como significado a disputa eterna do bem contra o mal.

          “O navio negreiro” representa para Candido (2000) sua contribuição de maior fôlego à literatura nacional, elevando o elemento africano a uma figura nobre a ponto de ter sua realidade declamada na estética poética. As ideias abolicionistas desse momento começaram a tecer eco em nossos escritores, sendo Castro Alves como símbolo de transformação da narrativa sobre o preto degradado, celebrando-o como peça heroica antes do cume do abolicionismo em nossa elite. Na obra supracitada, Castro Alves dignifica o negro sustentando sua dor com as agruras de sua dura realidade em nossa terra perfazendo traços visuais potentes. Há a presença de versos que demonstram fugacidade, numa oratória popular e brasileira, já mostrando a riqueza e diversidade de nossa cultura, dando-lhe identidade própria. Alves assume ser um poeta romântico de peculiar engajamento social para sua época. 

Não podemos olvidar que José de Alencar e Gonçalves Dias forjaram o mito do aborígene americano para além da literatura em nossa nação. A gênese brasileira abastecida pelo traço do primitivo americano foi vista com altivez de nossa diferente formação.

          Candido (2000) também observa do problema da integração do negro à sociedade brasileira, e, obviamente, à literatura nacional. Escritores oitocentistas que vieram após Castro Alves atenuavam os traços físicos e abstratos da matriz africana à cultura brasileira como ocorre até os correntes dias. A miscigenação foi usada como forma de afastamento do elemento negro de nossa realidade. Perpetuou-se a ideia do embranquecimento do negro.

 

“Shape Slave” by William Turner

          William Turner em sua peça artística “Shape Slave” expõe as atrocidades do sistema escravocrata. O episódio real de 1783 do genocídio de parte da população negra doente arremessada ao oceano sob a ordem do líder de um navio. Essa decisão foi tomada em face de que as perdas só seriam cobertas por aqueles perdidos ao mar.

          O trágico episódio é dimensionado pelo artista ao apresentar a embarcação instável e parte dos corpos das vítimas dominados pela virulência da água, que se mistura a cor vermelha, a qual aguça ainda mais a dor dos negros na carnificina causada também por seres marinhos. Mister lembrar que os negros africanos não tinham domínio de técnicas de navegação e não sabiam nadar.

          A beleza trazida ao centro por cores quentes – amarelo e laranja – entram em contraste pelas cores escuras que estão relacionadas ao desespero dos escravos. O navio, construção humana que significou liberdade e riqueza para alguns, para outros representou dor e humilhação, aparece sob uma perspectiva longínqua e em tamanho diminuto, sofre também a ação da água pintada sob as cores azul e cinza. Na obra, inclusive o homem branco europeu sofre com a prática escravocrata, como se fosse um castigo da própria natureza por sua ambição.  

          Outrossim, em países europeus, como Inglaterra e França, a escravidão já estava decadente. Nos anos 30 e 40 do século XVIII, essas nações trataram por abolir o tráfico de escravos em suas colônias. A obra de Turner é data em 1840, duas décadas antes da Guerra Civil nos Estados Unidos, em que um dos motivos para o bélico evento foi a questão da escravidão.

 

Considerações finais

          As obras de Castro Alves e William Turner encontram-se na inspiração em observar o escravo da África na América como um ser capaz de encantamento mesmo nas distantes mãos brancas burguesas. A preocupação com a realidade social é flagrante e estão em conformidade com as novas ideias do período de seus fazimentos. A dor do elemento subserviente une-se a dor dos artistas.

 


 

Referências

 

GAGLIARDI, Caio. Pleno Mar – A Bordo dos Navios de Castro Alves, Samuel Taylor Coleridge, J. M. William Turner e Gustave DoréCrítica & Companhia: Caderno Eletrônico, Campinas, dez. 2005. Disponível em: http://www.criticaecompanhia.com.br/2Caio.htm. Acesso em 11 de jan. de 2021.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000. v 2.

TURNER, Joseph Mallord William. Shape Slave. 1840. 

Álvares de Azevedo e seu “spleen”

 

 

          Candido (2002) observa o jovem Azevedo como um escritor de espírito inquieto em face de sua juventude. Viveu apenas duas décadas, tendo-se apoiado no romantismo de Lorde Byron, Álvares de Azevedo apresenta em sua obra o desejo de revolta contra as normas sociais mundo com efeitos dramáticos de caráter individual. A influência byroniana faz-se em temas, em técnicas utilizadas, em citações e em epígrafes. Por seu turno, Roncari (2002) lembra-nos o Romantismo situa-se na transição do “Ancien Régime” para o ideal burguês, sendo que o poeta romântico sente saudades de tempos pretéritos em que havia maior contato com a paisagem natural, acabando por tornar-se

um inconformista, alguém que lamenta não apenas os limites da natureza e a falta de contato com o Absoluto, como também o mundo histórico em que vive, isto é, o mundo burguês, onde tudo é medido pelo que vale em moeda: os tecidos, os legumes, o trabalho, as ideias, os afetos, o amor. (RONCARI, 2002, p. 313).

 

O eu romântico considera-se intelectualmente acima da maioria dos demais humanos, somente ele sendo capaz de apresentar as agruras desse novo mundo, expressando-se em primeira pessoa, a fim de que o leitor sinta a dor do poeta, enaltecendo-o. O sujeito poético situa-se quase sempre no meio urbano, refratado da natureza, idealizando-a com sabores exóticos.

Candido (2002, p. 161) leciona que o poeta fez uso “da discordância e do contraste, como corretivo a uma concepção estática e homogênea da literatura” numa forma cotidianamente prosaica. Romântico e moderno Azevedo deixou expressa sua procura pelo certo e errado, em seguir regras ou destruí-las.

          Candido (2002) também salienta que os oxímoros poéticos, com desejos e frustações de uma persona literária insegura neste mundo, de Azevedo propicia que os críticos também apresentem opiniões divorciadas sobre sua obra. Em “O poeta moribundo”, ele casa o obscurantismo da morte de forma satírica perfazendo o grotesco.

 

Poetas! amanhã ao meu cadáver

Minha tripa cortai mais sonora!...

Façam dela uma corda e cantem nela

Os amores da vida esperançosa!

 

          Do tema do amor, Álvares também fez uso, tecendo a aspiração à atração física com o contido sentimento de amor. A descrição da musa em sua poética faz-se de forma sedutora, por vezes dormindo, com os seios à mostra, e com cabelos despreparados. O gozo evapora-se no desejo reprimido. O poder do eu lírico definha-se diante do sono da amante. Candido (2002) lembra que sua famosa “Lira dos vinte anos” é marcada por palavras que realçam a palidez imprecisa, através de imagens com vapores e névoas, e a consequente impotência do eu lírico diante da realidade em momentos noturnos.


 

Referências

 

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000. v 2.

RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p. 287-315.

O romantismo de Gonçalves Dias

 

 

            Antonio Candido (2000) leciona que Gonçalves Dias é o escritor romântico mais imponente da primeira leva, considerado à sua época nalguns grupos literários como o precursor da literatura brasileira. Roncari (2002), apoiado nas palavras ilustres do crítico oitocentista José Veríssimo, revela que este via Gonçalves Dias como produto das condições ambientais, sociais, culturais e raciais em conluio com seus talentos que lhe eram próprios, sendo-lhes capaz de dar voz a um eu lírico cantor altivo das riquezas da “terra brasilis”, caso ilustre de sua “Canção do exílio”. Trazendo em suas letras a inspiração e o formalismo poético da literatura neoclássica, Candido (2000, p. 71) resume desta forma Gonçalves Dias como um ser preocupado com

o ideal literário; beleza na simplicidade, fuga ao adjetivo, procura da expressão de tal maneira justa que outra seria difícil. É que, sob o patético da vocação romântica, persistia nele a necessidade da medida, legada pelo neoclassicismo e sensível, em sua obra, até sob a manifestação ocasional do mal do século.

 

            Candido (2000) considera-lhe discreto em questões que envolviam as belas letras de seu período, capaz de idealizar em sua forma indianista o sujeito aborígene como um ser honrado, através de “uma visão geral do índio, por meio de cenas ou feitos ligados à vida de um índio qualquer, cuja identidade é puramente convencional e apenas funciona como padrão.” (ibid., p. 74). Silvio Romero (2001) décadas mais adiante, já apoiado em narrativas científicas, considerava praticamente todas as tribos indígenas que participaram da nossa formação como oriundas duma única raça, os tupis, estando-os praticamente no momento da pedra polida ao aportar dos lusitanos e que obtinham seus sustentos da pesca, da caça e do cultivo de mandioca.

Candido (2000) também faz questão de destacar que as palavras desse poeta romântico trazem traços do medievismo metropolitano, com medidas líricas e heróicas pretéritas. Desprovido de uma visão científica da etnografia, a obra gonçalvina cose seu personagem americano de modo exótico a partir da sensibilidade europeia embasbacada com o Novo Mundo acompanhada de melodia e escolha lexical precisas, aproveitada pelo encanto com o habitat e comportamento do herói primitivo, como Dias apresenta-nos em seu poema “I-Juca Pirama”. As formas femininas também foram observadas por ele, como em “Leito de Folhas Verdes”, em que há a simbiose da beleza das formas naturais com as da mulher indígena, além do sofrimento amoroso desta pela chegada de seu amado guerreiro. Candido (2000) chama a atenção nesse poema para o estado psicológico de apreensão e decepção do ser feminino que declama sua condição nestas palavras:

 

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes

À voz do meu amor, que em vão te chama!

Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil

A brisa da manhã sacuda as folhas!

 

            Candido (2000) também apresenta que Gonçalves Dias não ficou preso somente ao indianismo, sendo capaz de dar plasticidade sonora em seus versos, utilizando-se da vibração sensorial a partir de imagens coloridas, sons e cheiros, tergiversando com temas referentes à solidão, à noite, à morte, à glória consagrada “post mortem”, como em “O mar”.

 

Mas nesse instante que me está marcado,

Em que hei de esta prisão fugir pra sempre,

Irei tão alto, ó mar, que lá não chegue

Teu sonoro rugido.

           

            Roncari (2002) ressalta a dificuldade aos estudos literários o motivo que autores ovacionados a fim de dar-lhes sustento artístico, não obstante ele afirma que “é que eles [os autores] realizam em alto grau as expectativas literárias de sua época e, ao mesmo tempo, não se esgotam nela, mas as transcendem. Os dois aspectos gerais que todas parecem combinar são estes: por um lado, tocam profundamente no humano, naqueles aspectos do homem  que ultrapassam e, ao mesmo tempo, contêm as particularidades históricas do seu tempo; por outro, dominam e exploram ao máximo as possibilidades da representação literária e da expressão verbal.” (RONCARI, 2002, p. 375). Gonçalves Dias foi capaz de ser um marco da expressão literária nacional a ponto que artistas ulteriores quisessem manter alguma relação com ele, seja de aproximação ou afastamento. Utilizando-se da própria tradição europeia, Dias foi capaz de dar “uma nova representação dos ‘feitos’ portugueses no Brasil, só que a partir das suas consequências para o indígena e de seu ponto de vista.” (Ibid., p. 378).


 

Referências

 

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000. v 2.

ROMERO, Silvio. Fatores da literatura brasileira. In: História da literatura brasileira. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Imago, 2001, p. 55-121.

RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p. 287-315.

Historiografia e crítica literária do século XIX com Sainte-Beuve e Hyppolyte Taine

 


          O crítico literário francês novecentista Charles-Augustin Sainte-Beuve teceu em 1862 um eminente texto dentro da crítica literária da época: “Sobre o meu método”. Sainte-Beuve assinala que “o estudo literário me conduz assim muito naturalmente ao estudo moral.” Já ao principiar sobre seu método, Sainte-Beuve escreve “a observação moral do caráter está mais no detalhe, nos elementos, na descrição dos indivíduos e, quando muito, de algumas espécies.”

          Um homem novecentista preocupa-se em diferenciar as plantas ou animais, do ser humano, que, em sua perspectiva, é um ser mais complexo pois é dotado de liberdade, fator que lhe permite fornecê-lo uma série de combinações inúmeras.

          Sainte-Beuve leciona o que é eminente observar no escritor e homem superior: “se conhecêssemos fisiologicamente bem a raça, os ascendentes e ancestrais, teríamos luz sore a qualidade secreta e essencial dos espíritos.” Para ele, tal homem superior é um produto de seus pais, mormente, de sua genitora. Destarte, observar a procedência dos genitores é encontrar o ser superior. Não obstante, isso só não é suficiente, mister é analisar “o primeiro ambiente, o primeiro grupo de amigos e de contemporâneos em que ele se encontrava no momento em que seu talento eclodiu, tomou corpo e tornou-se adulto.” Nesse grupo literário, o homem superior possui a capacidade de agrupar seus pares em torno de si, projetando talento de eloquência.

          Sobre o prazer que tecer palavras sobre o bom grado literário, Sainte-Beuve escreve: “não sei de prazer mais doce para o crítico do que compreender e descrever um jovem talento, no seu frescor, no que ele tem de franco e primitivo.”

          Sainte-Beuve adverte que o homem superior é limitado, começando-se a deteriorar com o esvaecer de seu talento: “na maioria das vidas literárias que nos são submetidas, um determinado momento em que falta a maturidade que se esperava, ou então, se alcançada, ela se ultrapassa, e em que o próprio excesso de qualidade torna-se o defeito.”

          No epílogo de seu escrito “Sobre o meu método”, Sainte-Beuve defende que os espíritos superiores se reconhecem, não obstante faz questão de advertir que “diga-me quem te admira e quem te ama, e te direi quem és”, levando-se em consideração “pelos inimigos que ele [um talento] suscita e atrai sem o querer, por seus contrários e aqueles que lhe são antipáticos, por aqueles que não o podem instintivamente tolerar.”

          Outro crítico da língua francesa de renome dos novecentos foi Hyppolyte Adolphe Taine, cujo pensamento positivista tem uma reserva de base sociológica. Em 1863, escreveu “História da literatura inglesa”.

          No texto supracitado ele ressalta a importância da literatura, pois é possível “a partir dos monumentos literários, reencontrar a maneira como os homens sentiram e pensaram há vários séculos”, contemplando-se “objeto, método, instrumentos, concepção das leis e das causas” afim de “conhecer o homem que se estuda o documento.”

          Taine leciona que é através das folhas escritas por um homem é possível perceber que este é “dotado de paixões, munido de hábitos, com voz e sua fisionomia, seus gestos e suas roupas, distinto e completo como aquele que há pouco deixamos na rua.” Ao ter contato com uma obra literária não é possível observar diretamente o ser físico que escreve, tampouco seu comportamento. Somente resta tecer julgamentos mutilados de uma alma por meio de um conhecimento aproximado.

          Outrossim, Taine destaca a importância desse ser responsável por desentranhar esse mundo oculto dos textos. Esse ser é o historiador, responsável por “desentranhar sob cada ornamento de uma arquitetura, sob cada traço de um quadro, sob cada frase de um escrito, o sentimento particular de onde saíram o ornamento, o traço, a frase; assiste ao drama interior que se travou no artista ou no escritor.” Para Taine, a história como outras disciplinas do século XIX tomou seu “modelo moral”, em que o historiador – inclusive ele próprio – “deparamos com certa disposição primitiva, com certo traço próprio de todas as sensações, todas as concepções de um século ou de uma raça, certa particularidade inseparável de todos os procedimentos da mente e do coração.”

          Influenciado pelo cientificismo novecentista, Taine preocupa-se em dispor sua visão sobre o desenvolvimento coletivo com a ideia de raça embrionária da nação: “acha-se sempre como mola primitiva alguma disposição muito geral da mente e da alma, seja ela inata e naturalmente vinculada à raça, seja adquirida e produzida por alguma circunstância aplicada na raça. Essas grandes molas determinadas fazem efeito aos poucos, penso que ao cabo de alguns séculos põem a nação em novo estado, religioso, literário, social, e econômico.”

          Taine expõe seu entendimento sobre raça: “disposições inatas e hereditárias que o homem traz consigo à luz, e que normalmente andam junto com diferenças marcadas no temperamento e na estrutura do corpo.” Além da raça há outros fatores que formam o que ele chama de estado moral elementar. Taine leciona que “clima e situação diferentes acarretam nele necessidades diferentes, por conseguinte um sistema de ações diferentes, por conseguinte também um sistema de hábitos diferentes, por conseguinte enfim um sistema de aptidões e instintos diferentes.” Em suma, Taine assinala que “pode-se considerar o caráter de um povo como o resumo de todas as suas ações e sensações precedentes.” Taine aproveita para circunscrever que o meio é oriundo de condições físicas ou sociais. Outro fator que ele destaca é o desenvolvimento existente no decorrer do tempo, como ocorre com uma planta, também ocorre com a formação humana, em que há precursores e sucessores. A parte sucessória é dependente da primária, ambas envolvidas por circunstâncias que lhes direcionam.

          Taine afirma que “as três principais obras da inteligência humana” são a filosofia, a religião e a arte, seres constituidores das diferentes raças presentes no globo terrestre. O caráter próprio de cada raça é responsável por dar forma a um sistema local, do qual se faz presente a literatura. De modo assaz agudo para a época, Taine finaliza suas palavras lecionando que é “principalmente pelo estudo das literaturas que se poderá fazer a história moral e caminhar rumo ao conhecimento das leis psicológicas, de que dependem os acontecimentos. Dedico-me aqui a escrever a história de uma literatura e a procurar nela a psicologia de um povo.”

 

Considerações finais

          Percebemos que como homens de sua época – século XIX – Sainte-Beuve e Taine preocupam-se com os aspectos históricos que forjaram uma raça, um tempo histórico, uma nação. Tais características devem ser consideradas para um crítico literário.

          Nos dois textos utilizados como base, por vezes, os franceses preocupam-se em fazer analogias da crítica literária com outros ramos do conhecimento humano, como a matemática e a biologia, por exemplo.

          No texto de Taine fica mais visível a influência do biologismo – calcados nas ideias de adaptação e evolução. Em a “História da literatura inglesa”, ele dispõe de forma mais adequada e extensa seu pensamento acerca da formação de seu estado moral elementar.

          Esses críticos apresentaram sua influência na inteligência brasileira, caso de Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Júnior, por exemplo.


 

Referências

 

SAINT-BEUVE, Charles-Augustin. Introdução à História da Literatura inglesa. In: SOUZA, Roberto Acízelo (org.). Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Chapecó, SC: Argos, 2011, p. 520-527.

 

TAINE, Hyppolyte. Sobre o meu método. In: SOUZA, Roberto Acízelo (org.). Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários (1688-1922). Chapecó, SC: Argos, 2011, p. 528-543.

Questões primárias sobre a literatura nacional brasileira

 

          Em “Fundamentos da literatura brasileira”, de 1888, Silvio Romero aponta a penúria de trabalhos acerca da literatura nacional. Para Romero essa então realidade precária advém da também parca situação lusitana, desde a época da ligação luso-brasileira metrópole-colônia. Romero aponta que houve uma parca literatura novecentista sobre nosso estado literário, porém ausente de grande eminência.

Uma exceção Romero faz questão de citar, o livro do austríaco Ferdinand Wolf, “Le Brésil Littéraire”, de 1863, o qual para ele apresentava uma realidade imprecisa do acervo literário brasileiro, ausente de “vistas teóricas; é um produto artificial e diplomático. O tom em geral é ditirâmbico, e, entre outros, os exageros sobre o merecimento de seu principal inspirador, Gonçalves de Magalhães, provocam hoje o riso.” (ROMERO, 2001, p 57).

Silvio Romero (loc. cit.) explica a importância da tessitura de escritos sobre a história literária nacional ministrada por autores brasileiros:

A história do Brasil, como deve hoje ser compreendida, não é, conforme se julgava antigamente e era repetido pelos entusiastas lusos, a história exclusiva dos portugueses na América. Não é também, como quis de passagem supor o romanticismo, a história dos tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do africanismo entre nós, a dos negros no Novo Mundo.

É antes a história da formação de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária em que predomina a mestiçagem. Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias. Os operários deste fato têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação estrangeira.

Tudo quanto há contribuído para a diferenciação nacional deve ser estudo, e a medida do mérito dos escritores é este critério novo.

Tanto mais um autor ou um político tenha trabalhado para a determinação de nosso caráter nacional, quanto maior é o seu merecimento. Quem tiver sido um mero imitador português não teve ação, foi um tipo negativo.

Faltam os elementos para fazer um quadro vivaz e palpitante da vida íntima dos autores brasileiros.

 

Ademais, Romero (2001) assinala que compreender as feituras de um escritor é lograr êxito sobre seus momentos mais íntimos e individuais, bem como sobre sua relação com a nação e até com a humanidade. Percebemos que para Romero estudar a história literária de um país é ser capaz de determinar o espírito daquela nação, além de permitir com assaz agudez predizer o momento futuro desse povo. O estudioso deve

mostrar as relações de nossa vida intelectual com a história política, social e econômica da nação; será preciso deixar ver como o descobridor, o colonizador, o implantador da nova ordem de coisas, o português, em sua foi-se transformando ao contato do índio, do negro, da natureza americana, e como, ajudado por tudo isso e pelo concurso de ideias estrangeiras, se foi aparelhando o brasileiro, tal qual ele é desde já e ainda mais característico se tornará no futuro. (ibid., p. 59, grifo do autor).

 

No caso do Brasil, Romero (2001) assevera que apenas deve-se considerar os escritores aqui nascidos e os lusitanos que aqui habitaram e tiveram estima em aqui viver. O método defendido por ele deve ser “popular e étnico para explicar o nosso caráter nacional, não esquecerei o critério positivo e evolucionista da nova filosofia social, quando tratar de notar as relações do Brasil com a humanidade em geral. (ibid., p. 60, grifo do autor).

Estando em 1888, Silvio Romero aponta quatro períodos da história literária tupiniquim considerando-se manifestações extra-literárias, como fatos políticos, econômicos e científicos. O primeiro período inicia-se de 1500-1750, formado pelas obras flamengas e sedições até o período oitocentista; o segundo de 1750-1830, formado por limitado desenvolvimento próprio e surgimento da aptidão mineira; o terceiro de 1830-1870, formado pelo pensamento romântico, com a ratificação do Império e a preocupação em afastar-se da tradição lusitana através da mimética francesa; o quarto, a partir de 1970, com a suscitação crítica ao romantismo através das inspirações realistas e naturalistas, fazendo uso do positivismo filosófico e das ideias darwinistas.

Ao estabelecer limites históricos, Roncari (2002, p. 288-289) leciona que eles são estabelecidos a partir

reconhecimento de que representam o início e o fim de um momento em que a literatura adquiriu algumas características importantes. [...] O que interessa para a visão histórica são as dominantes, ou seja, como certos traços, secundários e desimportantes em alguns momentos, em outros tornaram-se decisivos e fundamentais e vice-versa.

 

          Romero e Roncari consideram que o grande evento para o ciclo romântico foi a fratura política de 7 de setembro de 1822. A independência política obrigou aos setores livres de uma sociedade ainda escravocrata indagações acerca de uma nacionalidade brasileira. Nossos literatos desse período romântico procuraram construir uma nacionalidade autônoma, segura, particular a partir da cultura indígena. A tradição ocidental via esse ser primitivo desprovido da impureza do homem civilizado, ligado à natureza de rios, de florestas, de extensões de terra não suficientemente exploradas pela ganância do colonizador europeu. Destarte, o bom selvagem tupiniquim serviu de inspiração a poetas e a prosadores da cultura letrada cansados do mundo moderno.

A partir desse momento, a literatura passa a ser crucial para a construção de um projeto de país, nação e povo. A cultura literária não se relacionava apenas a livros e a folhetins, mas também a construções oratórias e discursos nos sítios políticos e religiosos.

O desenvolvimento tecnológico capitalista ligado à profusão da informação permitiu aos cidadãos do império recém-estabelecido perceber às dissonâncias culturais, políticas, econômicas e sociais desse império, fomentando discussões sobre elas.

Além do indígena no seu habitat natural, entra em cena o burguês urbano. Tais mudanças de protagonistas vieram acompanhadas de novas orientações culturais, linguísticas, temáticas. O tempo representado nas construções literárias ganha uma dinâmica mais realista e precisa.

Para Roncari (ibid., p. 297), o Romantismo está ligado a “uma visão de mundo, uma forma de o homem de determinado período histórico, no caso a primeira metade do século XIX, representar e interpretar o próprio homem e o mundo a partir dos conhecimentos e valores da época.”, preocupando-se sempre em apresentar os traços mais eminentes desse momento, como a subjetividade, a preocupação com a arte, a espiritualidade cristã, a imprecisão, a instabilidade, os valores exóticos. Paulatinamente, a desilusão com os valores da revolução burguesa vão sendo a tônica, num mundo que recrudesce a potencialidade humana.

Destarte, fácil concluir que o período romântico tratou de forjar símbolos nacionais, distanciados agora da tradição portuguesa. Os escritores utilizaram-se no primeiro instante de nossa cultura local, dando-lhe um tom exótico e apaixonante.

Para Roncari (2002) é mister observar que tal período não originou um marco de xenofobia à tradição d´além-mar, não obstante foi capaz enaltecer suas particularidades, suscitando na inteligência brasileira a necessidade de haver uma linguagem poética própria aguçada agora pelas paisagens brasileiras. A intelectualidade reconhecia o atraso do país em relação ao mundo civilizado, mas encontrava refúgio na crença da construção de um mundo novo exuberante no continente americano.

Roncari (2002) em sua “Literatura brasileira” menciona uma figura destoante a esse belo parecer, o sorocabano e descendente de alemães Adolfo de Varnhagen. Ser ilustre da historiografia nacional em seus primórdios novecentistas, Varnhagen não era possuidor do mesmo entusiasmo com nossos ancestrais primitivos. Para ele, a raça indígena era inapta ao processo civilizatório que se desejava à nova nação. Para ele, a raça negra era ainda mais inferior, configurando-se como uma raça vagabunda. Confere-se o conservadorismo de seu posicionamento diante da nova situação política, preocupado com o abandono de valores tradicionais perpetuados pela matriz lusitana. Outrossim, seu destaque apresenta a dificuldade de parte da elite em adaptar-se à ocasião diferente de outrora.

Roncari (2002) também assinala que o poeta Álvares de Azevedo atenua a importância da independência política com a literária, pois ele não via com bons olhos um rompimento repentino com a tradição deixada pelos portugueses.

Durante os oitocentos pendurou na intelectualidade nacional a discussão sobre a situação da poesia feita em nossa terra com a realidade brasileira.


 

Referências

 

ROMERO, Silvio. Fatores da literatura brasileira. In: História da literatura brasileira. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Imago, 2001, p. 55-121.

RONCARI, Luiz. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002, p. 287-315.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O mal-estar de dois judeus: Freud e Bauman

 

               Bauman aproxima-se inicialmente do pai da psicanálise para entender a contemporaneidade. A cultura de outro fez-nos repelir a libido – gênese freudiana – em troca de segurança individual e coletiva. A ética moderna – fundamentada na razão humana - repeliu o pecado religioso da Idade Média, mas aquela acabou sendo superada pelo momento atual.

               A cultura pós-moderna, para Bauman, diminui o interesse pela segurança na crença do prazer através da liberdade individual, que causa mal-estar a esse indivíduo que agora está perdido nesse desejo inseguro.

               Na cultura pós-moderna tudo é volúvel e está fora de ordem de outrora. Tal organização tradicional está se esvaindo a partir da própria gênese moderna. Uma ordem segura foi buscada, por exemplo, no controle estatal. A literatura de Hannah Arendt estudou esse fenômeno.

               Também está presente a crença na satisfação incessante de produtos tangíveis e intangíveis. Essa contumaz repetição desse processo gera desempregos, na área econômica, e mais instabilidades psicológicas e sociais. O padrão de consumo é o qualificador dessa ordem-desordem, o qual propicia a exclusão de uma grande da população inserida nesse processo.

               Esse processo vai de encontro à herança burguesa de liberdade. Instituições tradicionais como a família, que davam a certeza ao ser humano de segurança, foram vilipendiadas. A prudência para o consumo daquilo que duraria em longo tempo esvaiu-se. O sujeito deslocado para o imediato renuncia ao próprio prazer do consumo de coisas essenciais para o automático e irrefletido consumo de coisas supérfluas. Fugaz e incerto, este é o mundo atual na avaliação de Bauman.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

“Mundo tão desigual, tudo é tão desigual”

 

          Por muito tempo e até hoje ainda, sobrevive o discurso de que o Brasil é uma democracia racial, em que as diferenças étnicas são valorizadas e respeitadas. Gilberto Freyre acreditava nessa democracia em virtude de o português dispor-se a manter relações com as mulheres negras e indígenas.

          O racismo ao elemento negro – pela cor da pele ou pelo comportamento cultural - em nosso país marginaliza-o, pois o considera maléfico e inferior. Atenua-se a participação das matrizes africanas e indígenas para a formação da sociedade brasileira. A fim de legitimar a exploração dos elementos negros e indígenas por parte da elite nacional, buscou-se a apreensão do racismo científico, a miscigenação para o embranquecimento populacional e a apologia do mito da democracia racial.

          O momento colonial foi crucial para a criação de raças inferiores e superiores. Os viajantes naturais dessa época, com um olhar que julgavam científico, procuraram construir uma hierarquização de grupos humanos. Os brancos europeus estavam em posição superior aos demais povos, o mais apto a dominá-los. Em momento ulterior, no continente americano, a acumulação de recursos geradas pelas mãos negras foram transferidas aos imigrantes, mormente da Europa. No modo capitalista, o negro liberto foi deixado analfabeto e sem a habilidade profissional que o modo de produção capitalista exige.

O interesse em temas africanos no Brasil buscou focar em seus primórdios nas relações raciais aqui constituídas a fim de tecerem narrativas acerca da identidade nacional, caso de Nina Rodrigues, Silvio Romero e Gilberto Freyre. O médico Nina Rodrigues, por exemplo, defendia que a miscigenação apagaria o elemento inferior negro da sociedade brasileira no futuro.

Em meados dos anos 50, a questão racial prossegue de outra forma, rompendo com a visão da democracia racial, privilegiando o estudo sobre a desigualdade entre brancos e negros em nossa sociedade.

A redemocratização dos anos 80, em conluio com a descolonização europeia no continente africano e com o movimento negro estadunidense permitiu uma maior discussão no combate às desigualdades étnico-sociais no Brasil. Exemplo disso, é a atual Carta Magna de 1988.

Em 2003, criou-se a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. Em 2010 foi sancionada o Estatuto da Igualdade Racial a fim de garantir a igualdade de oportunidades e o combate à discriminação à população negra.  Tais leis são importantes em face das tensões étnico-sociais existentes no Brasil.

          Dispositivos legais não são suficientes para atenuar o problema. O incremento de investimento na educação estatal, bem como ações afirmativas para o maior acesso da população negra são também importantes.

          A escola configura-se como um dos principais espaços para a formação de indivíduos a fim da convivência em sociedade. As relações étnico-sociais nesse espaço são questionadas, pois nele há o privilégio da cultura ocidental. A lei 10639/03 trouxe a obrigação do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, a fim de combater a presença da discriminação à população negra em face das relações de poder pretéritas buscando uma melhor equidade racial. Vale citar que tal medida visa a superação de preconceitos e a promoção de igualdade em direitos políticos, sociais e econômicos.

          As diretrizes do Ministério da Educação reforçam que os educandos tenham consciência da importância cultural da etnia a que pertencem, com o respeito a todos os grupos étnicos. Junta-se ao tema a importância da interdisciplinaridade com a necessária formação de docentes com formação adequada na abordagem do assunto. O revisitar contínuo do pretérito com ênfase à consciência coletiva alimenta a formação identitária de grupos sociais. Tudo isso em conjunto deve ser capaz de gerar novos conhecimentos.

          Os estudos acadêmicos mais recentes privilegiam em dar vozes a grupos politicamente minoritários, promovendo uma maior diversidade nas discussões. Constata-se que as organizações pátrias dão pouca importância a questão do racismo, por exemplo. Nas décadas finais do século passados, governos de países como Estados Unidos e Canadá preocuparam-se em intervir no mercado de trabalho, a fim de reduzir a discriminação contra minorias.

Apesar dos esforços, a compreensão sobre o continente africano ainda é incipiente, pois não é capaz de esmiuçar a conjectura complexa social, político, econômica e cultural desse lugar, em face, muitas vezes, do não uso de fontes primárias cunhadas por mãos africanas, com uma visão amiúde ocidentalizada da África.

Referências

 

HOLANDA et al. Brasil: uma democracia multiétnica? Cadernos de graduação – Ciências Humanas e Sociais Fits, Maceió, v. 1, n. 3, p. 39-45, nov. 2013.

GEVEHR, Daniel Luciano; ALVES, Darlã de. Educação para as relações étnico raciais: uma aproximação entre educação, cultura e desenvolvimento. Diálogos interdisciplinares, v. 9, n. 3, p. 21-38, 2020.