sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O mal-estar de dois judeus: Freud e Bauman

 

               Bauman aproxima-se inicialmente do pai da psicanálise para entender a contemporaneidade. A cultura de outro fez-nos repelir a libido – gênese freudiana – em troca de segurança individual e coletiva. A ética moderna – fundamentada na razão humana - repeliu o pecado religioso da Idade Média, mas aquela acabou sendo superada pelo momento atual.

               A cultura pós-moderna, para Bauman, diminui o interesse pela segurança na crença do prazer através da liberdade individual, que causa mal-estar a esse indivíduo que agora está perdido nesse desejo inseguro.

               Na cultura pós-moderna tudo é volúvel e está fora de ordem de outrora. Tal organização tradicional está se esvaindo a partir da própria gênese moderna. Uma ordem segura foi buscada, por exemplo, no controle estatal. A literatura de Hannah Arendt estudou esse fenômeno.

               Também está presente a crença na satisfação incessante de produtos tangíveis e intangíveis. Essa contumaz repetição desse processo gera desempregos, na área econômica, e mais instabilidades psicológicas e sociais. O padrão de consumo é o qualificador dessa ordem-desordem, o qual propicia a exclusão de uma grande da população inserida nesse processo.

               Esse processo vai de encontro à herança burguesa de liberdade. Instituições tradicionais como a família, que davam a certeza ao ser humano de segurança, foram vilipendiadas. A prudência para o consumo daquilo que duraria em longo tempo esvaiu-se. O sujeito deslocado para o imediato renuncia ao próprio prazer do consumo de coisas essenciais para o automático e irrefletido consumo de coisas supérfluas. Fugaz e incerto, este é o mundo atual na avaliação de Bauman.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

“Mundo tão desigual, tudo é tão desigual”

 

          Por muito tempo e até hoje ainda, sobrevive o discurso de que o Brasil é uma democracia racial, em que as diferenças étnicas são valorizadas e respeitadas. Gilberto Freyre acreditava nessa democracia em virtude de o português dispor-se a manter relações com as mulheres negras e indígenas.

          O racismo ao elemento negro – pela cor da pele ou pelo comportamento cultural - em nosso país marginaliza-o, pois o considera maléfico e inferior. Atenua-se a participação das matrizes africanas e indígenas para a formação da sociedade brasileira. A fim de legitimar a exploração dos elementos negros e indígenas por parte da elite nacional, buscou-se a apreensão do racismo científico, a miscigenação para o embranquecimento populacional e a apologia do mito da democracia racial.

          O momento colonial foi crucial para a criação de raças inferiores e superiores. Os viajantes naturais dessa época, com um olhar que julgavam científico, procuraram construir uma hierarquização de grupos humanos. Os brancos europeus estavam em posição superior aos demais povos, o mais apto a dominá-los. Em momento ulterior, no continente americano, a acumulação de recursos geradas pelas mãos negras foram transferidas aos imigrantes, mormente da Europa. No modo capitalista, o negro liberto foi deixado analfabeto e sem a habilidade profissional que o modo de produção capitalista exige.

O interesse em temas africanos no Brasil buscou focar em seus primórdios nas relações raciais aqui constituídas a fim de tecerem narrativas acerca da identidade nacional, caso de Nina Rodrigues, Silvio Romero e Gilberto Freyre. O médico Nina Rodrigues, por exemplo, defendia que a miscigenação apagaria o elemento inferior negro da sociedade brasileira no futuro.

Em meados dos anos 50, a questão racial prossegue de outra forma, rompendo com a visão da democracia racial, privilegiando o estudo sobre a desigualdade entre brancos e negros em nossa sociedade.

A redemocratização dos anos 80, em conluio com a descolonização europeia no continente africano e com o movimento negro estadunidense permitiu uma maior discussão no combate às desigualdades étnico-sociais no Brasil. Exemplo disso, é a atual Carta Magna de 1988.

Em 2003, criou-se a Secretaria Especial de Políticas de Promoção de Igualdade Racial. Em 2010 foi sancionada o Estatuto da Igualdade Racial a fim de garantir a igualdade de oportunidades e o combate à discriminação à população negra.  Tais leis são importantes em face das tensões étnico-sociais existentes no Brasil.

          Dispositivos legais não são suficientes para atenuar o problema. O incremento de investimento na educação estatal, bem como ações afirmativas para o maior acesso da população negra são também importantes.

          A escola configura-se como um dos principais espaços para a formação de indivíduos a fim da convivência em sociedade. As relações étnico-sociais nesse espaço são questionadas, pois nele há o privilégio da cultura ocidental. A lei 10639/03 trouxe a obrigação do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, a fim de combater a presença da discriminação à população negra em face das relações de poder pretéritas buscando uma melhor equidade racial. Vale citar que tal medida visa a superação de preconceitos e a promoção de igualdade em direitos políticos, sociais e econômicos.

          As diretrizes do Ministério da Educação reforçam que os educandos tenham consciência da importância cultural da etnia a que pertencem, com o respeito a todos os grupos étnicos. Junta-se ao tema a importância da interdisciplinaridade com a necessária formação de docentes com formação adequada na abordagem do assunto. O revisitar contínuo do pretérito com ênfase à consciência coletiva alimenta a formação identitária de grupos sociais. Tudo isso em conjunto deve ser capaz de gerar novos conhecimentos.

          Os estudos acadêmicos mais recentes privilegiam em dar vozes a grupos politicamente minoritários, promovendo uma maior diversidade nas discussões. Constata-se que as organizações pátrias dão pouca importância a questão do racismo, por exemplo. Nas décadas finais do século passados, governos de países como Estados Unidos e Canadá preocuparam-se em intervir no mercado de trabalho, a fim de reduzir a discriminação contra minorias.

Apesar dos esforços, a compreensão sobre o continente africano ainda é incipiente, pois não é capaz de esmiuçar a conjectura complexa social, político, econômica e cultural desse lugar, em face, muitas vezes, do não uso de fontes primárias cunhadas por mãos africanas, com uma visão amiúde ocidentalizada da África.

Referências

 

HOLANDA et al. Brasil: uma democracia multiétnica? Cadernos de graduação – Ciências Humanas e Sociais Fits, Maceió, v. 1, n. 3, p. 39-45, nov. 2013.

GEVEHR, Daniel Luciano; ALVES, Darlã de. Educação para as relações étnico raciais: uma aproximação entre educação, cultura e desenvolvimento. Diálogos interdisciplinares, v. 9, n. 3, p. 21-38, 2020.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Sociology in Brazil

 


            Para Antonio Candido, a Sociologia pode ser dividida em: 1880-1930, 1930-1940 e a posterior a partir de 1940.

            Na primeira fase estiveram presentes pessoas não especializadas que não ensinavam nem teciam pesquisas empíricas. Foram capazes apenas de formular interpretações sobre a população tupiniquim ou parcos princípios teóricos. Os juristas dos oitocentos buscavam interpretação a presença dum Estado moderno, dentro da estrutura política, social e econômica da época, a fim de tecer leis do nosso ordenamento jurídico. O pensamento evolucionista praticado na Europa aqui chegou, aliando tais juristas, aos homens da engenharia e, mormente, da medicina. A preocupação com o refazer histórico aliou-se ao cientificismo das ciências naturais. O pensamento da época teve que ser adequado às nossas excentricidades, abordando temas como mestiçagem e relações escravocratas, pensando, inclusive, no desenvolvimento futuro da nação. A Sociologia era vista, nesse momento, por juristas, como Rui Barbosa, Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda, também como forma de auxílio na elaboração das leis.

O jurista Sílvio Romero, em “Introdução à história da literatura brasileira”, de 1881, originou um marco no pensamento sociológico no Brasil. As obras de Romero procuraram ligar as ciências sociais ao conhecimento das leis biológicas da época. O engenheiro Euclides da Cunha, no início do século XX, com a obra célebre “Os sertões”, merece destaque ao expor seu entendimento acerca da sub-raça sertaneja, causada pelo determinismo do meio físico e pela constituição racial. Para Euclides, a segregação geográfica do povo do sertão foi determinante para forjar sua força. Ele também observou as discrepâncias do Brasil sertanejo (visto como arcaico) e do Brasil litorâneo (visto como mais adequado ao sucesso do desenvolvimento). Outrossim, temos que citar o trabalho do também jurista Oliveira Viana, abarcado pelo pensamento racial de Romero, aprofundando-se nas raízes de nossa formação social a fim de criar um melhor entendimento e gerenciamento das instituições político-administrativas nacionais. Viana acreditava na estratificação de raças e buscou compreender as relações de poder na família e na política desde o Brasil Colônia.

A partir de 1930, o ensino dessa ciência chega aos estamentos das primeiras universidades, com professores estrangeiros e capazes de formar os primeiros brasileiros de extensão universitária nessa área, deixando de lado o autodidatismo. A insurgência na formação de maestros para o ensino regular veio acompanhada das primeiras publicações científicas contribuindo para a institucionalização dessa disciplina, capaz de já fornecerem um melhor cônscio científico da vida social entre os brasileiros. O contexto político da Revolução de 30 influenciou tais inovações, a fim de estudar o negro e o índio brasileiro com a finalidade de normatizar a vida da sociedade brasileira, incluindo a formação cívica. Vale citar a eminente obra “Casa grande & senzala”, do bacharel de Direito Gilberto Freyre, influenciada pela antropologia física e social, geografia humana, economia e psicologia. Freyre foi pupilo, na América do Norte, do renomado Franz Boas, que tinha apego a conceitos modernos de cultura, de adaptação e de raças. O estudo no além-mar foi a forma encontrada por poucos para especializarem-se na disciplina. Na obra supracitada, buscou compreender a origem da estrutura social e política brasileira, concentrada na relação entre latifúndio, trabalho escravo e sistema agrícola. Suas obras são pautadas pela vivacidade literária das palavras, desprendendo-se do linguajar científico muitas vezes.    

Na década seguinte, começou-se a produção regular de pesquisas sociológicas. Destaca-se Fernando de Azevedo com seus estudos sobre a vida artística do país, bem como sua preocupação com educação e aspectos culturais. O professor francês Roger Bastide deteve-se em estudos afro-brasileiros, sob a ótica etnografia e da psicanálise, originando frutos na psicologia social e sociologia da arte. Florestan Fernandes buscou reconstruir o passado em seus estudos sobre povos indígenas, também se deteve sobre métodos aplicados na Sociologia e na interpretação de fatos sociais. Houve maior interesse no desenvolvimento da vida coletiva, as manifestações culturais do interior do país, a arquitetura, a vida do trabalhador das maiores urbes.

Os estudos de Sociologia em nosso solo acabaram por fixar, num primeiro instante, no estado de São Paulo, contemplado por instituições que aferiam seus docentes e discentes através de concursos, financiamento de pesquisas e regime de trabalho integral. Tais condições permitiram as primeiras investigações sobre preconceito de cor e níveis de vida da população em geral. Outrossim, começaram a suscitar organizações e eventos de Sociologia, que foram se alastrando pelo país, com a criação de universidades públicas. A complexidade “sui generis” de nossa sociedade exigiu maior demanda de conhecimento sobre folclore, antropologia cultural, história social, sociologia política, a fim de estudar, por exemplo, o fenômeno da rápida e estendida urbanização.

            Em tempos mais recentes, estudos valorizam as novas formas sociais da vida em espaço urbano, como a resistência de grupos populares à dominação do sistema capitalista, e a representação cultural dos seres humanos consoante o sexo, a idade, a origem.

Referências

 

CANDIDO, Antonio. A sociologia no Brasil. Tempo social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 271-301, 2006.

LOBO, Elisabeth Sousa. Caminhos da sociologia no Brasil: modos de vida e experiência. Tempo social, revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 7-15, 1992.

Foucault: poder disciplinar e biopoder

 

            Foucault afasta-se da visão tradicional de poder, cunhada por Hobbes (poder estatal-jurídico) e Marx (visão economicista). Afasta-se, destarte, de ver o poder como uma relação de ação com caráter repressivo. Ele não observa o poder como algo negativo.

          Foucault preocupa-se com o espaço em que ocorre as relações de poder, atingindo em seus estudos as instituições que não eram tradicionalmente vistas como centrais, como as instituições de ensino. Preocupa-se ele com as minúcias e técnicas da configuração de poder, não com sua relação jurídica-racional, declinando-se duma perspectiva altimétrica de cima para baixo. Vale citar, a obra “O ateneu”, de Raul Pompeia, a qual se atém à repressão física e psicológica num internato.

          Foucault preocupa-se com o objetivo das relações de poder, e, outrossim, que o poder se constitui numa rede de transitoriedade disponível a todos. Ele também salienta que o poder invoca para si a verdade, como forma de legitimar-se. Para ele, o poder não pode ser armazenado por um indivíduo ou grupo social. Impossível alguém ou algum coletivo ser o dono do poder. Foucault descrê da visão antagônica entre dominadores e dominados. O poder possui um aspecto plural

          Para Foucault o poder possui uma característica libertadora. Na célebre obra “Microfísica do poder”, ele leciona que o poder gerar prazer. O poder produz algo positivo, o conhecimento. O poder, através de seus mecanismos, produz discursos capazes de originar ainda mais poder. Para ele, o poder está em toda parte.

          Foucault utiliza-se da História para afirmar a constituição cada vez maior de instituições disciplinares, deixando para trás uma visão legal-racional-religiosa entre soberanos e súditos – o poder soberano.

Criou-se, paulatinamente, então o poder disciplinar que visa a adestração de indivíduos, como as prisões, escolas e fábricas. Tal poder disciplinar possibilita o aumento de saber das pessoas atingidas, com o enaltecimento de habilidades, aptidões e rendimentos. Isso gera consequências, obviamente, no mundo econômico. Para lograr êxito essa forma de poder, obriga-se a uma distribuição massiva de poder. Esse tipo de poder possui como característica a capacidade de observar as pessoas sem que elas percebam ou se preocupem com o controle.

Na rede mundial de computadores, as pessoas observam-se mas, geralmente, não são capazes de detectar quando e quem as vê. Os “hackers” são especialistas em controlar e burlar o controle da própria “web”. A preocupação nessa rede virtual configura-se sobre o conteúdo e o modo de como as informações são acessadas pelos indivíduos.   

Para Foucault a disciplina é uma tecnologia de poder e essencial para o incremento da produtividade do saber, intensificando os efeitos da submissão e utilidade a aqueles submetidos ao sistema. Os dispositivos de tal disciplina configuram-se na intensa vigilância, normatizando a disciplina e atingindo as esferas privada e pública, substituto da violência física; e a sanção disciplina que diminui as condutas consideradas inapropriadas. Para Foucault, tais dispositivos – vigilância e sanção – esperam a normalização dos comportamentos.

O poder disciplinar acabou por criar, aquilo que Foucault chama de biopoder, que atinge não os indivíduos, mas a coletividade. Os saberes da matemática e das ciências naturais passam a ser fontes para essa forma de poder. Questões de higiene pública, políticas públicas de natalidade e a seguridade social são exemplos de biopoder, que, por ora, buscam melhorar a vida das pessoas em sociedade.

O poder disciplinar e o biopoder acabam por originar uma sociedade de normalização para Foucault, com regulamentação individual e social.

Por fim, vale citar a obra de George Orwell, 1984, a qual se embasa no poder estatal, mas relata a submissão aos planos individual e coletivo, numa esfera de regimes totalitários, ao sabor da filósofa teuto-estadunidense Hannah Arendt.


 

Referências

 

COSTA, Rogério da. Sociedade de controle. São Paulo em perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 161-167, jan./mar. 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392004000100019. Acesso em: 02 dez. 2020.

POGREBINSCHI, Thamy. Foucault, para além do poder: disciplina e biopoder. Lua nova: revista de cultura e política, São Paulo, n. 63, p. 179-204, 2004. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452004000300008. Acesso em: 02 dez. 2020.

 

sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Pós-modernidade líquida

                 

                Bauman entende que a pós-modernidade inclui a publicidade de aspectos particulares da vida individual em sociedade. A intimidade e a privacidade tornaram-se públicas. Podemos ver isso, nas redes sociais e na própria televisão, com a apresentação de programas de telerrealidade, como o “Big Brother”.

               Isso ocorre em virtude da constante efemeridade das relações humanas e a suscitação de um individualismo jamais visto na História.

       “Tudo o que é sólido, desmancha no ar”, frase que serve para entender melhor a contemporaneidade, e que é remetida ao “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, bem como ao título de um livro do filósofo Marshall Berman – o qual se atém para compreender a modernidade. A sentença serve como alusão também para explicar o pensamento de Bauman, com sua modernidade líquida.

            Um dos aspectos mais importantes da modernidade é o contínuo refazer, com a intensa fabricação de produtos em série e de poderem ser constantemente remodelados a fim de satisfazer interesses econômicos, por exemplo, graças ao desenvolvimento tecnológico.  A constante volatilidade interfere também nas próprias relações humanas. A estabilidade das relações humanas dá lugar à volúpia da liberdade individual, em que as pessoas podem agir conforme seus desejos. Para Bauman, não obstante, essa liberdade não é capaz de satisfazer esse ser humano “emancipado” em virtude de ter que arcar com as consequências de suas escolhas, além do sentimento de angústia causado pela dúvida do devir. O ser humano tornou-se um ser frustrado em sua existência.

            Para Bauman, a liberdade individual na contemporaneidade decorre da importância de consumo de produtos tangíveis e intangíveis que nos causem prazer, como o reconhecimento social. O intenso consumo acarreta o intenso descarte daquilo que é considerado antiquado e senil. As relações humanas adquirem características desse consumo de tais produtos. Os vínculos entre os seres humanos são de alta volatilidade e inseguras. Esse aspecto faz as pessoas tornarem-se cada vez mais isoladas e adeptas ao consumo de drogas antidepressivas, por exemplo.

               O intenso medo das pessoas com essa instabilidade tornam o viver coletivo cada vez mais inseguro. A incerteza nas questões de identidade e de justiça são sinais desse tempo. Conectar e desconectar acabam sendo a regra.

terça-feira, 24 de novembro de 2020

Elias e Bourdieu e seu “habitus”

 

          O “habitus” de Elias

          Para Norbert Elias o “habitus” configura-se como a apreensão de valores de um grupo social por parte de um indivíduo que vive neste grupo. O “habitus” perdura no tempo histórico conforme seu poder de arraigamento num grupo. O comportamento individual ocorre em consequências de relações pretéritas ou atuais.

          Elias sustenta que mesmo em situações que o indivíduo toma ações por iniciativa própria, assim o faz porque estas estão já inseridas na coletividade. A identidade individual só se faz presente numa identidade coletiva.

          O “habitus” pode sofrer modificações pois os indivíduos dentro da coletividade interagem-se entre si. A possibilidade de aceitação em apreender o pensamento coletivo por um indivíduo aumenta em demasia quando ele sente-se de alguma forma coagido, como pela propaganda ou por algum tipo de milícia. Para Elias, o “habitus” social pode ser algo tão forte que faz com que indivíduos acabem por aceitá-lo sem pestanejar por serem absolutamente naturais, não obstante, para Elias, são criados pelos próprios humanos o mais das vezes.

          Belém e Andrade destacam que o “habitus” social foi disseminador da ideologia nazista na Alemanha dos anos 20 e 30 em virtude do sentimento de humilhação entre os alemães, fazendo-os unirem-se com um ideário revanchista coletivo. O papel do Estado foi crucial para lograr êxito à fidelidade de concidadãos à essa ideologia política, oportunidade em que se utilizou peças publicitárias e a repressão física para estabelecer ainda mais o medo coletivo.

          Mister observar que a explicação de Elias serve também de explicação para a transmissão de ideologias religiosas, morais, políticas etc. Por exemplo, um patrão que busca criar o perigo de demissão para os empregados de sua empresa se os mesmos aderirem a sindicatos; ou de um professor que se utiliza de várias estratégias para convencer seus alunos a adotarem sua crença político-ideológica, utilizando-se de sua autoridade para achacar discentes que, por algum motivo, fazem-se resistentes a tal ideologia política, inclusive através de medidas de algum tipo de abuso psicossocial em conluio a demais alunos a ele condescendente.

          De ascendência judaica foi um dos perseguidos pelo regime nacional-socialista na Alemanha.

O hábito de “Bourdieu”

          Pierre Bourdieu interessou-se pelo “habitus” ao relacionar o pensamento escolástico e a arte gótica do historiador de arte alemão Erwin Panofsky. Para Bourdieu, o “habitus” perfaz-se na cultura (sistema de esquemas consciente e inconsciente internalizados aplicados a situações particulares). Ele buscou compreender o comportamento dos agentes e os condicionamentos coletivos de existência.

          Bourdieu leciona que o mundo social é objeto de uma relação oriunda da experiência familiar (fenomenológica), uma ruptura ulterior a esse conhecimento primário e familiar, constituindo-se em práticas econômicas e linguísticas (objetivista), e o terceiro (praxiológico), constituído pelo objetivista com as capacidades de exteriorizar a interioridade e interiorizar a exterioridade.

          As ações cotidianas do agir são impostas por disposições estruturadas socialmente e estruturantes nas mentes dos indivíduos, perfazendo-se na relação dum “habitus” e as pressões existentes numa conjectura, existentes num determinado momento histórico.

          A memória que habita no “habitus” é de característica volúvel e sempre aberto para experiências inovadoras, consoante Bourdieu. Graças a essa capacidade contínua de transformação que ocorre a adaptabilidade às diversas situações práticas.

          Os “habitus” dos indivíduos são interdependentes para a feitura de momentos pretéritos, a trajetória atual e o devir ulterior, existentes ao acaso e, muitas vezes, incoerentes, constituindo-se de esquemas mistos acionados diante de uma realidade exigida.


 

Comparação

          Basicamente Elias e Bourdieu debruçam-se sobre o mesmo objeto, “habitus”, mas cada um de sua maneira. Ambos dão importância a episódios dispostos no decorrer do tempo.

          Bourdieu relaciona o “habitus” ao futuro, diferente de Elias. O primeiro também cria sobre os modos de conhecimento teórico (fenomenológico, objetivista, praxiológico). Parece-nos que o pensamento de Bourdieu é mais complexo.


 

Referências

 

BELÉM, Letícia Christina Costa; ANDRADE, Mariana Dionisio. Norbert Elias e a sociedade dos indivíduos: o habitus que disseminou o nazismo. In: ENCONTRO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DA UNI7, 7. Anais..., 2018. Disponível em: https://periodicos.uni7.edu.br/index.php/iniciacao-cientifica/article/view/615. Acesso em: 24 nov. 2020.

SELTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, n. 20, Rio de Janeiro, mai./ago. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782002000200005. Acesso em: 24 nov. 2020.